terça-feira, 6 de março de 2012

P'la mão de Ricardo Neves: PROPÓSITO

Se um dia alguém me perguntasse por que razão é que eu gosto de matar, antes de lhe responder, seria obrigado a fazer uma pequena correcção. Matar não é algo que eu goste de fazer: é algo que eu faço. É preciso que isso fique bem claro. Tenho plena consciência do quanto isto me diferencia da maioria das pessoas, mas tal como elas, não sou alheio às minhas obrigações.
Poderá haver quem questione a moralidade deste meu sentido de responsabilidade. É verdade que matar pessoas não é a mesma coisa que elaborar relatórios ou fazer inventários, mas o princípio subjacente é comum: todos temos os nossos objectivos a cumprir.
Pessoalmente, talvez não me importasse de fazer outra coisa se fosse esse o meu destino. Emprego a palavra “destino”, embora não acredite nisso tanto quanto gostaria. Por um lado até seria bom acreditar que, apesar de ter as mãos sujas de sangue, a responsabilidade pelas minhas acções não recai sobre mim; por outro, aprecio demasiado a liberdade de poder escolher para entregá-la a quem ou ao que seja. Quanto ao destino, no seu sentido mais místico, a minha opinião varia. Acredito que algumas coisas acontecem porque têm de acontecer, outras acontecem porque nós influenciamos o mundo à nossa volta com as nossas palavras e as nossas acções.
Através da minha faceta mais pública também costumo exercer esta influência no mundo. Não sei dizer se tenho mais impacto na vida das pessoas como autor ou como assassino nem isso interessa para agora. Para mim, embora já tivesse algumas mortes no meu currículo antes de escrever o meu primeiro livro, a escrita sempre foi tão importante como a morte. De certo maneira, utilizando um lugar-comum, ambas são faces da mesma moeda. Dois pesos da mesma balança: pela escrita crio, pela morte destruo.
Já por diversas vezes perguntei a mim mesmo: o que faria se não tivesse sido criado desta maneira? Como seria eu se a morte não tivesse feito parte da minha vida desde tenra idade? Aos seis anos de idade, ainda antes de aprender a ler, já sabia disparar uma pistola. É estranho, mas é verdade. Alguns colegas de profissão matam porque são bons no que fazem, outros porque têm prazer nisso; eu mato porque é para isso que fui treinado, mas até que ponto seria diferente se não tivesse recebido esses ensinamentos?
A morte fará parte do que sou ou do que faço?
Tenho pensado muito acerca disto ultimamente. A última lista que me entregaram colocou-me na rota de pessoas que me levaram a questionar aquilo que faço. Desviei-me um pouco, é verdade, mas por vezes, para sabermos se estamos no caminho certo, temos de voltar atrás e tentar perceber como seria se tivéssemos optado de maneira diferente.
Ainda não cheguei a nenhuma conclusão e não acho que vá chegar tão cedo. Tratei da última pessoa da lista ontem – quanto a isso, estou descansado –, mas ainda tenho um livro para acabar de escrever. Pode ser que daqui por uns tempos, quando as coisas estiverem mais calmas, eu volte a perder tempo a pensar na vida.

Ricardo Neves, protagonista de Um Cappuccino Vermelho

P'la mão de João Dias Martins: DECISÃO

Lembro-me de um tempo em que tudo era mais fácil, um tempo em que não precisava de me preocupar em tomar decisões. Recordo-me desses dias, às vezes com saudade, outras com alívio. Todavia, as saudades que sinto não chegam para desejar um retorno ao passado. Por muito que as memórias boas suplantem as más, teria dificuldades em deixar que a minha vontade fosse subjugada pela vontade de outra pessoa. À semelhança de muitos, não aprecio ser contrariado, muito menos por mim mesmo. No entanto, há alturas em que penso que sou eu quem mais me contraria.
O sonho de muitos autores, eu incluído, é mudar o mundo com a sua escrita. Não importa a dimensão em que esse sonho se traduz, é por ele que o autor busca as palavras certas para contar a sua história.
Não sou um escritor de best-sellers, talvez gostasse se o fosse, mas a verdade é que não sou. Os meus três romances até à data não foram êxitos retumbantes, mas até venderam bem. Tenho a perfeita noção de que não sou um autor Nobel. Um dia talvez me obrigue a trabalhar para isso. Por enquanto, quero apenas contar as histórias que me apetecer sem pretensões de ser laureado.
É sempre com este sentimento em mente que inicio a escrita de um novo livro e este não foi excepção. Quando comecei, pensei que seria apenas mais um. Não "mais um" no sentido pejorativo do termo, somente uma história com princípio, meio e fim. Já havia escrito três romances antes deste e, muito embora todos eles tivessem a sua história por detrás da história, acreditava que não teria grandes surpresas pela frente além daquelas que é suposto encontrar numa jornada criativa.
Estava enganado. Ou talvez estivesse mais certo do que gostaria. É escusado pedirem-me para explicar o que se passou. Suponho que exista uma explicação para o que aconteceu; eu, infelizmente, não a tenho. Só sei aquilo que a comunicação social já noticiou: um conhecido empresário foi encontrado morto em sua casa. O que mais ninguém sabe é que, dias antes, eu havia escrito esse mesmo acontecimento com todos os detalhes, incluindo aqueles de que só a polícia e o responsável pelo crime teriam conhecimento.
Concordaria com quem me dissesse que tudo isto não passa duma estranha coincidência se tivesse sido um acontecimento isolado. Uma semana antes da morte deste empresário, um outro empresário de esquina conheceu o seu fim. Por ser uma figura de menor importância na sociedade – havia quem o considerasse um parasita –, a sua morte passou despercebida. Encontrei o seu cadáver num beco; o mesmo local e as mesmas circunstâncias de uma cena que eu escrevera dias antes.
Cheguei a pensar se não estaria eu a matar aquelas pessoas. Desde que não fosse apanhado, isso até poderia funcionar como manobra de marketing. A certa altura, mais do que pensar, cheguei mesmo a desejar que fosse eu o assassino. Preferia isso a ter alguém a agir em meu nome. Preferia ser eu o assassino e ter assim a hipótese de me poder redimir dos meus actos.
Tenho saudades dos dias em que a minha vontade não era suprema, porque nesses dias estava liberto de pensar nas repercussões das minhas decisões. Podia escrever sobre o fim do mundo sem ter a preocupação de que isso se pudesse tornar realidade. Hoje em dia, tenho que avaliar muito bem as consequências das minhas palavras. Às vezes pergunto-me se estes eventos não aconteceriam mesmo se eu não escrevesse sobre eles. Dou alguma consideração a esta hipótese de ser uma espécie de profeta, apesar de não acreditar muito nela.
Ignoro se serei o único responsável por tudo o que está a acontecer ou uma mera ferramenta nas mãos do Destino. É este poder que vem da palavra escrita, esta capacidade de decidir quem vive e quem morre, que me força a continuar. Mesmo que esta história nunca chegue ao público, eu preciso de saber como é que ela terminará. Se me arrependerei dessa decisão, só o tempo o dirá.
João Dias Martins, protagonista de Um Cappuccino Vermelho